Mira Schendel

Myrrha Dagmar Dub (Zurique, Suíça, 1919 - São Paulo, SP, 1988). Desenhista, pintora, escultora. Muda-se para Milão, Itália, na década de 1930, onde estuda arte e filosofia. Abandona os estudos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Estabelece-se em Roma em 1946, e, em 1949, obtém permissão para mudar-se para o Brasil. Fixa residência em Porto Alegre, onde trabalha com design gráfico, faz pintura, escultura de cerâmica, poemas e restauro de imagens barrocas, assinando com seu nome de casada Mirra Hargesheimer. Sua participação na 1ª Bienal Internacional de São Paulo,em 1951, permite contato com experiências internacionais e a inserção na cena nacional. Dois anos depois muda-se para São Paulo e adota o sobrenome Schendel.

 

Na década de 1960 realiza desenhos em papel de arroz. Em 1966, cria a série Droguinhas, elaborada com papel de arroz retorcido e trançado, que é apresentada em Londres, na Galeria Signals, por indicação do crítico de arte Guy Brett (1942). Nesse ano, passa por Milão, Veneza, Lisboa e Sttutgart. Conhece o filósofo e semiólogo Max Bense (1910 - 1990), que contribui para a realização de sua exposição em Nurembergue, Alemanha, e é autor do texto do catálogo. Em 1968 começa a produzir obras utilizando o acrílico, como Objetos Gráficos e Toquinhos. Entre 1970 e 1971, realiza um conjunto de 150 cadernos, desdobrados em várias séries.

 

Na década de 1980, produz as têmperas brancas e negras, os Sarrafos e inicia uma série de quadros com pó de tijolo. Após sua morte, muitas exposições apresentam sua obra dentro e fora do Brasil e, em 1994, a 22ª Bienal Internacional de São Paulo lhe dedica uma sala especial. Em 1997, o marchand Paulo Figueiredo doa grande número de obras da artista ao Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP).

 

Análise

A produção artística de Mira Schendel, marcada pela constante experimentação, é constituída por múltiplas séries de trabalhos, experiências bastante diversas quanto a formato e dimensões, aos suportes escolhidos e à técnica adotada, mas que guardam entre si uma coerência no que diz respeito às questões por eles suscitadas. Daí a dificuldade em dividir sua obra em fases cronológicas e a conseqüente identificação de aspectos que reaparecem constantemente, desdobramentos entre uma série e outra, que conferem a sua obra uma linguagem inconfundível, com várias ramificações.

 

As obras de Mira Schendel geralmente não têm títulos, mas ela nomeia as séries, que funcionam como apelidos aos trabalhos. Ela vive em Porto Alegre entre 1949 e 1953, período em que realiza retratos e naturezas-mortas de tons escuros. Na década de 1950, sua linguagem pictórica simplifica-se progressivamente, em trabalhos que exploram o tratamento dado à superfície. De 1954 a 1956, faz pinturas encorpadas em tons geralmente sombrios, como cinza e ocre, de matéria densa e opaca, em têmpera ou óleo sobre madeira ou tela.

 

A década de 1960 é um período de intensa e variada produção. Nos primeiros anos dedica-se sobretudo à pintura, misturando técnicas e usando diferentes suportes e materiais, como gesso, cimento, areia e argila, com o que obtém superfícies densas e evidencia o suporte como constituinte ativo da obra. De 1962 a 1964, realiza diversos Bordados, seus primeiros trabalhos com papel japonês, feitos com tinta ecoline, geralmente com desenhos geométricos e cores escuras, mas transparentes, depois retomados na década de 1970.

 

Mira Schendel faz grande quantidade de desenhos em papel de arroz, conhecidos também como Monotipias, de 1964 e 1966. Ela os realiza entintando uma lâmina de vidro sobre a qual o papel é pousado para, então, traçar sobre ele as linhas, pelo avesso, usando a unha ou algum instrumento pontiagudo. A opção em desenhar pelo verso tem uma importância conceitual para a artista, que pesquisa assiduamente um meio de chegar mais próximo da transparência. Como chama a atenção o crítico de arte Rodrigo Naves, esse traço indireto, caracterizado pelo uso do vidro entintado, em lugar de riscar a linha diretamente sobre o papel, diminui o controle sobre o resultado, incorporando irregularidades e imprecisões que, justamente, interessam a artista mais do que a vontade de ordenação e o controle dos meios [1].

 

Entre os inúmeros desenhos realizados seguindo esse procedimento, há aqueles só com linhas, outros com letras, palavras ou frases, símbolos ou caligrafias, configurando uma investigação sobre as potencialidades plásticas dos elementos da linguagem, ao mesmo tempo em que exploram a liberdade e delicadeza do gesto que traça formas abertas e imprecisas.

 

Numa série de desenhos de 1965, postumamente chamados Bombas, em vez da estreiteza da linha, que tem uma presença mais sutil, a artista cria, com nanquim sobre papel úmido, grandes massas negras de contornos indefinidos, mais ou menos retangulares. Em 1966, cria a série Droguinhas, objetos tridimensionais vazados sem forma definida, elaborados com papel de arroz retorcido e trançado, tramado com nós. Realiza também Trenzinhos, série de folhas do mesmo papel, penduradas em fila em um "varal"[2].

 

Segundo a historiadora da arte Maria Eduarda Marques, as Droguinhas representam uma intenção desmistificadora diante do mercado e da institucionalização da arte, pois são trabalhos que, como descritos nas palavras da própria artista, estão "em oposição ao 'permanente' e ao 'possuível'"[3].

 

Outras obras que exploram a transparência são seus Objetos Gráficos, que Mira Schendel começa a produzir em 1967. Assim como nas Monotipias, em que podia escolher a face de seus desenhos, os Objetos Gráficos também têm dois lados. Mas nesses casos o papel de arroz, sobre o qual dispunha letras manuscritas ou tipos impressos, é prensado entre duas grandes chapas de acrílico, depois suspensas por fios no teto, afastadas da parede, podendo ser vistas pelos dois lados.

 

Os Toquinhos, 1968, são peças de acrílico transparente com pequenos cubos do mesmo material nos quais ela aplica letras, signos gráficos ou pedaços de papel japonês tingido com ecoline. Em 1969, realiza na 10ª Bienal Internacional de São Paulo a instalação Ondas Paradas de Probabilidade, constituída por fios de nylon pendentes do teto ao chão, pendurados em grades quadriculadas. Semelhante aos Objetos Gráficos, produz Discos, placas circulares de acrílico portando letras, números ou signos gráficos prensados. Nesse período a artista explora as projeções da luz sobre a parede com os Transformáveis, pequenas tiras de acrílico transparente articuladas umas às outras, semelhante a um metro dobrável.

 

Em 1970 e 1971, realiza séries de Cadernos, em quantidade aproximada de 150, vários dos quais são expostos no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP). Produz uma nova série de Toquinhos, em 1973 e 1974, desta vez usando colagens de pequenos quadrados de papel japonês coloridos. Na série de Datiloscritos, 1974, predominam tipos de máquina de escrever.

 

Em meados da década de 1970, retoma séries anteriores, e faz desenhos dos Bordados ou Datiloscritos, reproduzidos em gravura, e novas séries curtas de trabalhos de pequenas dimensões, menos divulgadas. Em várias delas percebe-se a influência da filosofia oriental e características místicas, como nas Mandalas, em ecoline sobre papel.

 

Realiza a partir de 1975 Paisagens Noturnas, em papel japonês tingido com ecoline e aplicação de fios ou pequenos pedaços de folha de ouro. Entre 1978 e 1979, produz a série Paisagens de Itatiaia, em têmpera negra sobre papel, com letras aplicadas, mais informais, em que se delineiam montanhas. Para a 16ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1981, produz 12 pequenos trabalhos chamados I Ching.

 

Volta às naturezas-mortas com uma linguagem ainda mais econômica em Mais ou Menos Frutas, conjunto de 1983. Desta vez, compõe com traço seco, sem manchas ou sombras, um número variado de frutas ambiguamente tratadas como signos e como objetos naturais, valendo-se do recurso de ordenação e seriação. A respeito de Mais ou Menos Frutas, o crítico Alberto Tassinari comenta que "estes desenhos estão, de fato, a meio caminho entre a figuração e a abstração. São esquemas de frutas (...). O fato de serem esquemas, porém, não lhes retira a singularidade"[4].

 

Em 1987, concebe a série Sarrafos, com têmpera e gesso sobre madeira, a última que chega a concluir. Para o crítico Ronaldo Brito, "muito além de transgredir o limite entre categorias (pintura, relevo, escultura), os Sarrafos exibem uma evidência desconcertante que por si só torna teóricas tais divisões". Eles implicam um diálogo com a pintura, a relação do sujeito diante do quadro, e ao mesmo tempo mobilizam o corpo, valores por excelência da escultura. Operando sobre esses dois eixos de espacialidade - a superfície branca do retângulo e a tridimensionalidade da barra de madeira preta que se projeta no espaço -, obtém o que o autor qualifica como um "salto à dimensão do corpóreo"5. Nesse ano, inicia também uma série de quadros feitos com pó de tijolo aplicado à cola sobre madeira, dos quais conclui apenas três.

 

Notas

1. NAVES, Rodrigo. Pelas costas. In: SCHENDEL, Mira. No vazio do mundo. São Paulo: Editora Marca D'Água, 1996. p. 63. [Catálogo da exposição realizada na Galeria de Arte do Sesi, em São Paulo, com curadoria de Sônia Salzstein].

2. Para o artista José Resende (1945), trabalhos como Droguinhas e Trenzinhos evidenciam a preocupação com a obsolescência da arte, questão também presente nas séries das Monotipias, em que exercita a espontaneidade do gesto. Ver: RESENDE, José. In: SCHENDEL, Mira. No vazio do mundo. op. cit. p. 252.

3. A autora desenvolve esse argumento recorrendo a trecho extraído de carta de Mira Schendel ao crítico de arte Guy Brett. Ver: MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 35.

4. TASSINARI, Alberto. Mais ou menos frutas. In: SCHENDEL, Mira. No vazio do mundo. op. cit. p. 271.

5. BRITO, Ronaldo. Singular no plural. Experiência crítica. Organização: Sueli de Lima. São Paulo: Cosac e Naify, 2005. p. 294.

 

MIRA Schendel. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2450/mira-schendel>. Acesso em: 25 de Jun. 2021. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7